Nascesse cântico, o futebol idolatraria Fausto. Fizesse um hino, homenagearia Didi. Escrevesse uma epopeia, exaltaria Heleno. Cantasse uma elegia, lamentaria por Barbosa. Mas num poema simples, que encerre todos os dons de todos os craques, o futebol rabisca Domingos da Guia e pronto.
Ai do atacante que partisse para cima de Domingos, lançasse a bola à frente, desejando que lá ela o aguardasse chegar. Pobre do meia-direita que gingasse em drible de corpo para desconcertar da Guia. Coitado do meia-esquerda que tentasse um banho de cuia. É bem capaz de que tenham morrido todos os seus adversários, os velocistas, os dribladores e os matadores, infelizes.
Aquilo que tentassem, rendia-se a bola inerte, morta, eu diria ajoelhada aos pés de Domingos da Guia.
Deixe-a aqui comigo, Paulo Rossi.
Fique quietinha, não fale nada, eu me desculpo com Zidane.
Sem sofrimento, Maradona, ela preferiu o rapagão aqui.
Arte que fosse, espetáculo que se apresentasse, o mocinho, o herói, o ladrão de bola, o protagonista chamava-se Domingos da Guia.
Sequestrou sutilmente a bola de quem apareceu em Bangu achando-se, achando que todos lá andavam em pernas de pau, calçavam quarenta e oito, chutavam em linha reta, na direção apontada pelo nariz. Fora de Bangu, aí é que foi craque. Domingos da Guia, contrariando os bacanas da cidade maravilhosa, desfilou astúcia e mestria no Vasco, no Uruguai, na Argentina, no Flamengo, na Seleção Brasileira, sempre menosprezando a ligeireza dos lances mais perigosos, a sagacidade antecipando cada jogada.
Romário recebe, aplica um lindo lençol na intermediária e mata a bola no peito, desliza-a até a coxa direita, deita-a no chão. O volante vem que vem forte, a marcá-lo sem piedade, as travas da chuteira à frente, sem dó dos outros, sem dó dele. O drible da vaca ilude o marcador, que esperneia o vento. O baixinho refaz o drible e muda a direção no meio do caminho, meia-lua inteira, sopapo na cara do fraco.
Quem pede, recebe; quem se desloca, tem a preferência. Em outros termos, o atacante que não pede, não tem preferência; se não se desloca, não recebe. Isso para quando a bola está com o seu time. Se ela está com a defesa adversária, totó pra lá e pra cá, o bom atacante não aguarda, espreita; não descansa, arma o bote; conversa com ela e não desgruda os olhos. Dessa vez, o passe malfeito aconteceu no meio de campo da Seleção Brasileira. Atinado, ligado, Dorado, a camisa da Celeste solta no corpo, trava a bola com valentia e a toma de nosso jogador. Veloz, invade a área brasileira.
Acontece de Messi fazer jogada de efeito, mas é raro. O normal é aquele corte curto com a bola amarrada aos pés levar de roldão uma quinquilharia defensiva, cada jogador assustado, aguardando sua vez de ser passado para trás, até Messi se postar na frente do goleiro, para aí sim, enfeitar e deixar as coisas em seus devidos lugares, o goleiro caído, a bola dentro do gol. Pois que venha Messi, dribla um, dois, três, quatro, nem percebe o que vem pela frente, nem conta quantos estão à frente, só falta um beque e um goleiro. É pouco, lá vem ele.
Pois Domingos da Guia nunca se importou com a qualidade do atacante. Sempre confiou na bola, com a qual bronqueava de quando em vez, mas sempre a trazia de volta. Ei, você aí, me passe um carinho aqui, não me largue, não se afaste, não fuja.
* A preferência é minha, Romário.
* La pelota es mi, Dorado.
* La pelota es mi, Messi.
A vida é dura, Romário. A regra é clara, Dorado. O tempo é outro, Messi. Se a bola sumiu, procurem com Domingos da Guia.
Domingos Antônio da Guia, ou simplesmente Domingos da Guia, o ‘Divino Mestre’, nasceu no Rio de Janeiro em 1912 e morreu em 2000. Começou no Bangu, jogou no Uruguai (Nacional), Argentina (Boca Juniors), Vasco, Flamengo e Corinthians. Pai do ‘divino’ Ademir da Guia, o maior jogador da história do Palmeiras. Campeão carioca pelo Vasco e Flamengo, uruguaio pelo Nacional e argentino pelo Boca Juniors. Jogou a copa do mundo de 1938, quando o Brasil chegou em terceiro lugar. Para muitos, é o melhor zagueiro da história do futebol brasileiro.
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