Gestão é, antes de tudo, um processo político.
Apesar de seu sentido dominante, não há consenso sobre o conceito de gestão. A versão de maior audiência está relacionada à organização dos processos com vistas a aumentar a eficiência do setor público.
A gestão se ocupa, predominantemente, da reflexão, da invenção, do registro e da disseminação de formas mais adequadas de se fazer as coisas para aprimorar o serviço público, mirando, ainda que apenas no discurso, a eficiência. Assuntos como a qualidade dos serviços, o combate ao desperdício, o mapeamento de processos e o combate à corrupção, entre outros, também estão fortemente associados ao conceito dominante.
A origem dessa versão é marcada pela própria administração científica e seus desdobramentos, a administração pública (encarada especialmente a partir da burocracia como evolução do patrimonialismo), a nova administração pública e a governança.
Nesse processo de formação do conceito, é fundamental destacar a predominância da separação hermética que se fez entre política e técnica no âmbito da administração pública, porque ela é a causa de práticas, procedimentos, visões e valores que ignoram aspectos fundamentais relativos ao ambiente no qual as políticas são praticadas.
Isto gera impactos negativos tanto na prestação de serviços públicos quanto na representação que a sociedade tem do Estado e do espaço público. Para refletir sobre essas afirmações, cabe explorar o processo de sedimentação desse conceito incompleto de gestão.
Do ponto de vista da administração científica, é possível concebê-la como um ramo do conhecimento que se estrutura para orientar o Estado no interior de um sistema econômico regido pelo modo de produção capitalista. Ou seja, investigações que se ocupam de um ambiente privado: a empresa capitalista orientada para maximizar os lucros.
Por seu turno, é interessante notar como a expressão “administração pública” vai perdendo o protagonismo nas reflexões sobre a organização do Estado no Brasil. Em seu lugar desponta a “gestão pública”, trazendo consigo uma imagem de eficiência e modernidade.
Cabe outro parêntese para comentar a diferença na trajetória entre a administração e a economia. Interessante como a primeira teve mais dificuldades para fazer uma leitura de seu objeto a partir do ambiente público, ainda que ela tenha incorporado na análise conceitos como cultura, valor e ética. Sobre isso, é importante entender os argumentos dos que defendem que a administração nunca perdeu de vista a sua racionalidade instrumental no âmbito das organizações.
Talvez mais difícil ainda seja compreender as relações de poder mediadas (e contrabandeadas) pela racionalidade instrumental. Existe literatura que desvela os valores oficializados escondidos na gestão pública por detrás de uma linguagem aparentemente neutra.
Existem, por exemplo, leituras do desenvolvimento da esfera discursiva no planejamento investigando as sutilezas presentes na institucionalidade e na linguagem que o instrumentaliza, encontrando uma relação entre a administração por resultados e a legitimação de um Estado bloqueado.
Como pano de fundo que legitima esse “Estado estéril”, encontra-se a visão negativa sobre o Estado. Essa visão negativa tem suas raízes na interpretação dominante sobre a formação social brasileira, e é ela que autoriza a implementação de controles organizados a partir de uma “racionalidade acima das racionalidades”, práticas que vão sedimentando regras pretensamente neutras que terminam desautorizando a intervenção do próprio Estado.
Na tese intitulada “O planejamento governamental como discurso: tensões entre política e técnica”, Bruno Moretti apresenta e organiza esses conceitos. Ao final do trabalho, o autor usa, entre outros, o caso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) para ilustrar como a necessidade de fazer o Estado funcionar (o que seria, em tese, o principal objeto da gestão) construiu outros canais e circuitos dentro do Estado, reinventando caminhos para viabilizar a ação pública.
Retomando o desenvolvimento do conceito tradicional de gestão, é importante compreender o conceito de burocracia e as apropriações que a gestão absorveu na sua esteira. Ocorre que a burocracia introduziu no Estado uma perspectiva neutra e racional a partir de regras formais de natureza processual e procedimental. Essas regras tinham o objetivo de assegurar uma padronização a partir de critérios técnicos com vistas a profissionalizar as organizações e subsidiar o exercício do poder.
Ocorre que na tentativa de construir práticas que rompessem com o patrimonialismo e, ao mesmo tempo, racionalizasse a administração pública, a perspectiva instrumental não conferiu tratamento adequado a uma série de relações que influenciam e, por vezes, determinam as possibilidades associadas aos processos de produção.
Ou seja, argumenta-se que há um grave equívoco quando não se confere tratamento adequado à esfera pública, com toda a sua complexa rede contraditória de influências e determinações que irão incidir sobre os agentes, as instituições, os processos, as ideias etc.
Portanto, as reflexões mais tradicionais precisam ser aprimoradas a partir de métodos de pesquisa capazes de tratar e fornecer respostas que releiam o assunto em sua forma mais plena, considerando a complexidade que envolve as relações sociais. Para tanto, é preciso enxergar a gestão também a partir de outras óticas, tais como a sociologia, a filosofia, a antropologia e a ciência política.
Um tratamento mais completo da gestão pública deve considerar que ampliar a capacidade do Estado é fundamentalmente um processo de luta política em espaço em que há, ao menos:
conflito entre racionalidade política e racionalidade técnica;
regras de arranjo político que por vezes embaralham a situação entre oposição e adesão;
burocracias insuladas; e
absoluta complexidade, que cria uma série de leituras ambíguas reforçando a acentuada assimetria de informações.
Nesse ambiente, tratar a gestão pública sem considerar o cenário parece mais uma opção por não tratar de gestão, e sim investigar um outro fenômeno linear e controlado.
Esse conjunto que caracteriza o ambiente público parece suficiente para definir que a gestão é, antes de tudo, um processo político. Político, inicialmente, no sentido de que há interação entre pessoas em um espaço coletivo.
Além de não contribuir para esclarecer os dilemas, a perspectiva dominante cumpre uma função de demonizar a política e, consequentemente, o Estado, visto que opõe pejorativamente a técnica à política.
Cabe ressaltar que, nesse caso, os manuais de gestão também costumam cumprir a função de confundir quando afirmam que a gestão se dá a partir da política. Exemplos mais concretos disso são as afirmações de que o planejamento advém do plano do dirigente eleito. A partir dessa afirmação, a gestão (mas também a instrumentalização do planejamento) estaria autorizada a imprimir suas técnicas nos objetos, visto que a política já teria sido incorporada.
Significa que, provavelmente, todos os manuais de gestão pública irão tratar de política e técnica com vista a equilibrá-los. Entretanto, não só a prática é bem diferente do manual, como os manuais não costumam explicitar as dimensões políticas e implicações aludidas aqui. A omissão dessa complexidade se transforma em alimento para quem já tem a inclinação para opor, pejorativamente, política e técnica.
A nossa abordagem é diferente no sentido de combinar essas perspectivas, técnica e política, visto que para operar o Estado com responsabilidade e respeito à Constituição Federal é preciso fazer uma leitura das circunstâncias e possibilidades políticas de atuação. Também é preciso conhecer métodos, técnicas e instrumentos disponíveis, e aprimorá-los, para ampliar a suficiência e a qualidade dos bens e serviços.
Aliás, é de se destacar a urgência em aprimorar os métodos, especialmente porque vários deles foram concebidos a partir da negação da complexidade e da política, trazendo efeitos negativos na ampliação e na qualificação da ação governamental. Por outro lado, existem exemplos de como habilidades “técnicas” para a estruturação de informações e conhecimento “técnico” sobre a operação das políticas consegue potencializar os resultados da ação governamental. A estruturação e operação do Cadastro Único do Programa Bolsa Família é um desses exemplos.
É fundamental ressaltar que o ambiente no qual se desenvolvem as atividades de formulação e implementação de políticas é marcado por disputas que foram consolidando os instrumentos que organizam e operam cotidianamente as políticas públicas, cada um deles carregando consigo parte das condições (e contradições) que
viabilizam (ou interditam) as políticas públicas. Isto corrobora a afirmação de que o espaço público é um ambiente fundamentalmente de lutas, um tabuleiro em que se entrecruzam convicções ideológicas, posições políticas, (in)certezas sobre as melhores formas de planejar, implementar, controlar etc.
Ou seja, é um espaço extremamente complexo e permeado por posições contraditórias e conflitivas, situação que, por si só, deveria suscitar dúvidas diante das “certezas” que prometem que se X então Y, ou que B acontece por causa de A.
Diante disso, argumenta-se que é preciso superar o conceito tradicional de gestão, comumente entendido como um conjunto de processos e procedimentos fundado preponderantemente na teoria da administração de empresas.
Portanto, sugere-se que o conceito adequado de gestão deve associar a dimensão do resultado às condições que permitam ampliar e qualificar a escala dos bens eserviços públicos no sentido de cumprir os objetivos da República. Significado este que, necessariamente, parte das possibilidades e condições políticas de atuação do Estado.
Desse modo, o conceito de gestão deve ser praticado a partir da racionalidade política, combinado, a partir daí, com técnicas de coleta e tratamento de informações e organização de processos administrativos.
Assim, a gestão deve reconhecer que as maneiras de fazer, ou os processos de produção de bens, serviços e institucionalidades públicas, são expressões de relações sociais. Como tal, é preciso fazer uma leitura adequada desse ambiente, caracterizado por conflitos, interesses de toda a ordem, reatividade ao registro real dos fatos (inclusive porque incide sobre o registro formal um controle processual descomprometido com a implementação das políticas), e a ação de diversos atores que, recorrentemente, irão impor sentidos próprios aos processos, situação que pode inutilizar os métodos e modelos ideais desenvolvidos.
Evidentemente, refletir sobre a gestão a partir da sua essência política não significa descartar as ferramentas desenvolvidas para o setor privado, ou ainda as que foram adaptadas para o setor público. Trata-se, tão somente (como se fosse fácil), de fazer a avaliação correta e as eventuais adaptações ao ambiente para garantir que os instrumentos funcionem. E a melhor medida da sua adequabilidade será a sua utilização efetiva por parte daqueles legitimados para conduzir o Estado.
(Esse texto é uma adaptação de parte do artigo "As inovações jurídicas no PPA 2012-2015", escrito pelo autor em parceria com Otávio Ventura e Rafael Neto. O artigo foi publicado no livro "PPA 2012-2015 - experimentalismo institucional e resistência burocrática", lançado em 2015 pelo IPEA a partir da organização de José Celso Cardoso Jr. e do autor deste texto.)
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