Mbappé representa esta novidade futebolística europeia, que é a mistura de cores, a mistura de raças.
O futebol chegou ao Brasil vindo da Inglaterra pelas mãos e pés brancos de Charles Miller, um paulista nascido na capital. Filho de escocês, ele apareceu por aqui com as primeiras bolas, trazidas da Inglaterra.
Como tudo que se iniciava no Brasil, o direito de jogar futebol, assim como o direito à educação, à saúde, ao patrimônio ou à própria vida, não alcançou os negros. Os times se formavam nas fábricas e nas várzeas, mas os negros não participavam das partidas.
Com o tempo, mostrando habilidade com a bola, os negros conquistaram posição em alguns times, mesmo com a resistência dos chefões dos torneios.
Equipes com atletas apenas brancos tentavam boicotar os adversários multirraciais, mas foi perdendo o discurso com o tempo, por uma razão muito simples: dentro de campo, as equipes mistas lhes aplicavam verdadeiras surras. Assim, a resistência aos negros, sustentada em fragilidades morais, ganhava um adversário de peso, o componente futebolístico.
Não jogar com os negros porque eram ‘socialmente’ inferiores se apresentava como uma narrativa que dominava certas castas, mas que perdia sua força diante do discurso de rua:
- Estão é com medo de perderem dos negões aqui do bairro!
Depois, todos os times passaram a aceitar negros, uma condição para ganhar qualquer coisa.
O primeiro negro brasileiro a fazer fama com o futebol foi Friedenreich, um artilheiro preocupado em fazer gols, mas também em alisar o cabelo, disfarçar a cor ou vestir-se conforme a moda.
Depois, veio Fausto, a Maravilha Negra. Um jogador espetacular, o melhor jogador brasileiro na Copa de 1930, no Uruguai. Fausto fez sucesso no Vasco da Gama e foi o primeiro jogador brasileiro contratado pelo Barcelona. Foi humilhado pela sua cor, no Brasil e no exterior, mesmo quando vestia a camisa do Barça. Enfrentou valentemente, dentro e fora de campo, as perseguições raciais. Não apenas pelo simbolismo de sua vida, mas pela bola que jogou no Uruguai, não se pode falar na Copa de 1930 sem anotações extraordinárias sobre Fausto, a Maravilha Negra.
Do mesmo jeito, não se pode falar da Copa de 1938 sem enaltecer Leônidas, o Diamante Negro, o inventor do gol de bicicleta, o artilheiro que transformou o futebol e enlouqueceu o Brasil, levando multidões apaixonadas a torcerem pelo Flamengo e Seleção Brasileira.
Não se pode falar da Copa de 1950 sem ilustrar a página principal com a fotografia do negro Zizinho, o melhor jogador da Copa e, segundo a crônica esportiva, o único que não tremeu na derrota para o Uruguai.
Em 1954, tivemos a batalha de Berna, na Suiça, quando perdemos de 4 a 2 da Hungria em campo, mas batemos e apanhamos na luta de socos e pontapés que se seguiu ao jogo, envolvendo todo mundo, atletas, técnicos, dirigentes e até jornalistas. Na frialdade dos dias que se seguiram, jogaram o desequilíbrio da seleção em hipotéticos hiatos mentais exclusivamente dos jogadores negros, dentre eles Didi.
Para a convocação da Copa de 1958, por causa de 1954, os jogadores passaram por teste de aptidão psicológica. O objetivo era vetar negros, mas já não era correto, politicamente, bisbilhotar o perfil apenas dos negros, e Garrincha, como todos sabem, quase dançou nessa.
Em 1958, houve aquele que podemos considerar, até então, a maior vitória de uma nação multirracial, econômica e socialmente atrasada, sobre os donos do mundo antigo. Os negros do Brasil, liderados por Didi e Pelé, colocaram de joelhos toda a Europa.
Não se pode falar da Copa de 1966 sem uma fotografia maiúscula do negro Eusébio, o artilheiro português de gols estonteantes. Em 1970, novamente Pelé. Depois, em 1994, veio Romário. Em 2002, os negros Ronaldo, Rivaldo, Ronaldinho Gaúcho, Cafu e Roberto Carlos pentamarcaram o futebol.
A diabrura no corpo, a velocidade, a criatividade, os dribles, as cabeçadas e os tiros espetaculares a gol e outros elementos levados aos campos pelos jogadores negros marcaram um compromisso nesta Copa da Rússia com o brasileiro Neymar.
O negro, como saudação e memória do grande futebol, encontrou uma nova imagem nesta Copa, mas não foi a de Neymar. Pelo menos, por enquanto.
Quem deslizou e depois voou acima, pouco acima, para pousar elegante no gramado russo foi o francês Mbappé, na partida da França contra a Argentina. Apenas um menino negro de dezenove anos e já praticando um futebol de arrancar suspiros nos cemitérios onde jazem Didi, Fausto e Zizinho.
Arrancando com a bola desde sua intermediária, derrubando seus adversários argentinos apenas com o vento deslocado de seus movimentos, cortando espaço e tempo pela metade, como se fosse um leopardo durante a caça, desse jeito, com o corpo inalcançável e bruto, Mbappé destruiu e eliminou a Argentina da Copa.
A bola perto do corpo lembrou Pelé, a velocidade lembrou Ronaldo, o fenômeno, e a travessia objetivamente calculada, desde seu campo até o gol argentino, com certeza, foi coisa de Romário.
Terá começado uma nova e extraordinária trajetória no futebol, guiada, mais uma vez, por uma estrela negra, de brilho intenso e duradouro, como Pelé e outros?
Nada podemos afirmar, ainda.
Mbappé representa esta novidade futebolística europeia, que é a mistura de cores, a mistura de raças.
Os selecionados alemão, francês, inglês e dinamarquês incorporaram os negros em seus times. Se quisessem ganhar alguma coisa no futebol, se quisessem nos enfrentar, tinham que se misturar. No Brasil, aprendemos isso ainda na década de vinte do século passado.
Os europeus se apequenaram porque o preconceito racial dominou seu futebol. Pretendem, agora, recuperar o tempo perdido. Estão atrasados, mas as Copas os apresentam cada vez mais competitivos.
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