O seu telefone eu grampeei primeiro.
Avelar já me confessou que é desligado. Se fosse televisor, não dava despesa de energia; se fosse aparelho cardíaco, matava muito nego do coração. Demorou a perceber que assessor do Lula é servidor público das demais categorias: não pode errar, o erro é grave; não pode ter caso, caso queira; dar entrevista, a matéria está pronta; enviar imeio, meio mundo lê; conversar ao telefone, porque escutam bem.
- Está ligado, Avelar?
Tentava explicar essas coisas para Avelar, mas ele não entendia bem.
- Escute, Avelar, Brasília é a capital mundial da informação. Está todo mundo te escutando. Legal ou ilegal, bisbilhotar aqui é normal.
O Avelar fazia cara de paisagem, paisagem de outro planeta, planeta de outro lugar, desconhecido.
- Tem ABIN, federal, estadual, distrital, civil, militar. Grampo é disputado a tapa por aqui, Avelar.
Peguei Avelar pelo braço, entrei no ônibus, falei baixinho:
- Reclame da falta de troco.
Avelar reclamou da falta de troco, mas nem eu, prensado na roleta, escutei.
- Não, assim não, mais alto.
- Já cumpri com minhas obrigações, cobrador, mas o meu troco está demorando.
Já me preparava para reclamar do seu tom burocrático, mas o barulho das cadernetas se abrindo para anotações me convenceu. Fiquei satisfeito.
- Percebeu, Avelar?
- O quê?
- As cadernetas.
- Quais cadernetas? Não tenho caderneta.
Como até inteligência em Brasília é uma arte da classe do esculacho, resolvi apelar:
- Senhor, por favor, me empreste a sua caderneta.
- Sim, como não.
Os rabiscos demonstravam a pressa, mas a anotação era taxativa: sujeito alto, de boa aparência, circula em linha da Asa Norte; é, provavelmente, um subversivo.
Fui atrás de outra caderneta: intempestivo, brigador, pode provocar uma rebelião, é um agitador.
E de outra: o ônibus está cheio deles. Estão quietos em seus cantos, mas são suspeitos em geral. Altos e baixos, gordos e magros, barbudos e calvos, enganam com um silêncio perigoso, são artífices de protesto ou intelectuais de esquerda.
A última caderneta assustou o passageiro: Avelar, este eu já conheço.
Descemos do ônibus. Avelar protestava:
- De onde me conhecem? De onde me conhecem?
Dois anos depois, reencontro Avelar:
- Tudo bem?
Ele olhou de um lado, do outro, conferiu minha posição – viu que eu estava sozinho - e entrou no papo:
- Tudo bem, nada. Trabalho com o telefone o dia todo porque preciso ficar informado das coisas. É um tal de “trec-trec” no aparelho e de “esta é minha” que já me obrigaram, muitas vezes e educadamente, a pedir silêncio. E, passando até por mediador, evitar que o pessoal da inteligência brigue entre si:
“ Calma, gente.”
“ Calma, nada. É a minha vez. Esse cara está pegando todas, hoje.”
“Ele que procure outro. O seu telefone eu grampeei primeiro. Ele é meu!”
- Às vezes, sou obrigado a intervir – foi me contando Avelar:
“Está bem, um pega essa, depois eu faço outra ligação.”
“Promete?”
“Prometo.”
- E resolvo a parada. Minha vida é dura, percebeu?
Percebi, mas tive que interrompê-lo. O telefone estava tocando. Do outro lado da linha alguém me alertava:
- Não acredite nas desculpas de Avelar. Ele é culpado. Cuidado com Avelar. Sai de perto de Avelar.
- Mas quem está falando?
- Não devo contar.
- Fala de uma vez, se não eu desligo.
- Posso contar mesmo?
- Pode.
- É Avelar.
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