Consequentemente, dispararam as importações do diesel (o mesmo ocorreu com a gasolina). Em 2003, importávamos 24 milhões de barris de diesel; passamos a importar 82 milhões de barris em 2017. Distribuidoras como a Raízen (joint venture entre Shell e Cosan) e a Ipiranga estão ganhando muito dinheiro, praticando enorme margem de lucro, viabilizada pelos preços elevados da Petrobras.
Há alguns meses, escrevi neste blog que não é suficiente atribuir ao neoliberalismo a defesa da retirada do Estado da economia. O argumento foi ilustrado com a mudança das regras de exploração do pré-sal. Procurei mostrar que elas não são tão bem compreendidas apenas em termos de um modelo que invoca a necessidade de reduzir o papel do Estado, limitando seu espaço de intervenção e abrindo todo um campo de ação para os investidores privados.
Dizia o velho provérbio que o tempo é o senhor da razão. Observando a atual crise que afeta o Brasil, relacionada ao preço do diesel e à greve dos caminhoneiros daí decorrente, vale indagar: o que explica o cenário conturbado, expresso pelo desabastecimento e pela greve? Boa parte da esquerda dirá que os altos preços do diesel (mas também a gasolina e o gás de cozinha) e sua volatilidade são consequência direta do neoliberalismo, dessa visão cujo representante maior é Pedro Parente, de que a Petrobras deve ser regida exclusivamente pelos critérios de mercado. Sob essa chave, o problema é que o mercado está ditando a política de preços da Petrobras, que se comportou com uma empresa que só visa a lucros, atendendo a seus acionistas privados, e não como uma empresa pública. Novamente, a questão girará em torno dos benefícios e prejuízos da intervenção estatal.
O problema desta visão é que ela deixa de fora o mais importante: o mercado não é um dado natural. Como lembra Foucault, ele não é uma realidade que emerge espontaneamente assim que o Estado delimita seu espaço de intervenção. O mercado requer um Estado ativo em construir a moldura institucional sob a qual se desenvolve a lógica concorrencial. Tese especialmente oportuna diante da atual crise brasileira. Pois vejamos.
Os fundamentos da elevação dos preços internos dos combustíveis não são apreensíveis se nos fixamos na defesa do atual governo dos princípios do livre mercado. É preciso compreender que a questão não reside em demarcar uma espécie de linha até a qual o Estado está habilitado a agir, mas em definir a natureza da intervenção estatal. O neoliberalismo, se seguimos Foucault, é justamente uma tecnologia de governo indexada à racionalidade de mercado. Isto é, não se trata da radicalização de uma lógica autônoma do capital, algo que simplesmente se deixa fazer, mas de uma prática de governar sujeitos pensados como agentes econômicos. Dessa maneira, o “público” é demarcado como o que está em conexão com o sujeito de interesse individual. Já não é o Estado que vigia o mercado para “deixá-lo fazer”, conforme a ideia tradicional de regulação. É o mercado que se volta contra o Estado, constituindo um princípio de crítica que afasta da intervenção pública tudo aquilo que não fomenta o jogo econômico de sujeitos que concorrem entre si. O princípio é não deixar o Estado fazer.
A política de preços da Petrobras é definida pelas cotações internacionais do combustível, acrescidas de um custo de internação (logística e taxas) e margem de risco. O resultado é o aumento da volatilidade dos preços (foram mais de duzentos reajustes desde o início da gestão Temer, tanto para diesel como para gasolina), tendo em vista a variação do preço do barril de petróleo e do câmbio, mas também a definição de patamares de preços sistematicamente acima da cotação internacional. Em 2017, o diesel chegou a estar 60% mais caro no Brasil do que no resto do mundo.
Consequentemente, dispararam as importações do diesel (o mesmo ocorreu com a gasolina). Em 2003, importávamos 24 milhões de barris de diesel; passamos a importar 82 milhões de barris em 2017. Distribuidoras como a Raízen (joint venture entre Shell e Cosan) e a Ipiranga estão ganhando muito dinheiro, praticando enorme margem de lucro, viabilizada pelos preços elevados da Petrobras.
É o papel do Estado, materializado na política de preços da Petrobras (cujo acionista majoritário é a União), que constrói as condições para que multinacionais multipliquem suas vendas ao Brasil e operem com lucros extraordinários. Especialmente, os EUA dobraram sua participação no total de importações brasileiras do diesel. Diante dos altos preços, as refinarias da Petrobras estão com cerca de 30% de sua capacidade ociosa, mostrando que, de fato, a intervenção estatal no preço do combustível foi crucial para induzir o mercado, sob a forma de aumento exponencial das importações. Por sua vez, a população é pensada como sujeito econômico que deve absorver a volatilidade externa, adaptando-se às variações diárias do preço do combustível.
Desde que foiimplementada a nova política de preços, o Brasil aumentou a exportação de óleo cru e reduziu sua produção de refinados. As descobertas do pré-sal permitem que tenhamos petróleo suficiente para o refino de tudo o que o Brasil consome em termos de derivados. Bastaria vincular os leilões do regime de partilha à utilização interna para refino. Mas tal intervenção não passaria pelo regime de teste do mercado, para o qual cabe à Petrobras apenas acompanhar as oscilações do mercado. Sob a lógica concorrencial, diante de aumentos de cotações internacionais, só resta à Petrobras elevar preços internos, mesmo que ela disponha de óleo leve em quantidade suficiente para refinar no Brasil, a custos muito inferiores.
Qualquer prática em sentido contrário seria classificada no regime de verdade neoliberal como intervenção ilegítima, sob a forma de testes e medidas que fariam ver seus excessos. Estão aí as avaliações de mercado e a maneira como elas atribuem valor à empresa para atestar. O problema, portanto, não é de convencimento ou legitimidade, mas de práticas que fazem ver o Estado como excesso.
Mas se as práticas de governo são formas de conduzir os homens e, portanto, são relações de poder, também envolvem resistência. Foram os preços elevados do diesel que precipitaram a greve dos caminhoneiros, apoiada pela população, que sofre os efeitos dos altos preços da gasolina e do gás de cozinha. De repente, a política da Petrobras e seus critérios de mercado passaram a ser percebidas como um problema. Sob esse aspecto, a paralisação pode ser entendida como uma prática de fazer ver e falar, dirigindo-se aos objetos de Estado para classificar o intervencionismo em favor do mercado como algo contrário aos interesses dos indivíduos. Mas o controle do discurso é sempre objeto de disputa. Estão aí as críticas aos impostos federais e estaduais sobre os combustíveis para comprovar.
Quando a tese do intervencionismo neoliberal se deixava entrever timidamente por meio da política de preços da Petrobras, as respostas do governo a tornaram praticamente uma evidência. Em função das críticas acerca dos preços dos combustíveis, o governo anunciou uma subvenção ao diesel de R$ 9,5 bilhões, mantendo os fundamentos da política de preços intocados.
O corte de tributos federais e a subvenção, em tese, permitirão uma redução de R$ 0,46 no litro do diesel. Dessa maneira, as empresas (Petrobras e importadores) manterão suas margens, recebendo a diferença entre o preço de referência e o preço de comercialização. No crédito extraordinário que criou orçamentariamente a subvenção, são retirados recursos para financiá-la de áreas como educação e saúde. Para esta, há reduções, por exemplo, em aquisição de vacina, saneamento, Farmácia Popular e Rede Cegonha (combate à mortalidade infantil e materna).
Sob certo aspecto, dobra-se a aposta de vincular a escolha pública à racionalidade de mercado. Afinal, diante da resistência, a manutenção da política de preços da Petrobras suscita o reforço da intervenção estatal em favor do jogo econômico de mercado. É difícil prever o que acontecerá adiante, mas tudo dependerá das articulações entre práticas de governo e regimes de verdade que criem novos enunciados e visibilidades acerca do que é o público.
Decididamente, no neoliberalismo, a questão não é o laissez-faire. Mas como intervir, indexando a ação de governo aos padrões de mercado. O que mais explicaria uma subvenção orçamentária a fundos de investimento internacionais que detêm ações da Petrobras e a importadoras, retirando recursos, particularmente, do SUS, justo num momento em que a desigualdade e a mortalidade infantil voltam a subir no Brasil?
Diante do quadro, a esquerda não pode se posicionar na zona confortável que permite deter o monopólio de uma verdade oculta, contentando-se em desvelar, por detrás dos discursos ideológicos, a essência dos interesses que ela denuncia. É preciso entrar no jogo das aparências, onde se constroem os sentidos das coisas. Afinal, a crise abriu novos espaços de demarcação do público, questionando o mercado como fundamento da intervenção estatal. Sob essa chave, vale indagar: o que pode ser uma nova maneira de governar, induzindo outra racionalidade em que o mercado já não é o critério absoluto de teste da prática estatal? Eis a questão.
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