Deixemos para a história a interpretação dos feitos de Getúlio Vargas, mas JK querendo fazer cinqüenta anos em cinco não foi há tempo assim, e quase a gente pega ele na estrada, aplicando-lhe uma norma, negando-lhe uma licença-ambiental.
O tempo e o tamanho da encrenca esterilizaram a burocracia e nos tornaram, os burocratas, pessimistas. Por condescendência, deixemos para a história a interpretação dos feitos de Getúlio Vargas, mas JK querendo fazer cinqüenta anos em cinco não foi há tempo assim, e quase a gente pega ele na estrada, aplicando-lhe uma norma, negando-lhe uma licença-ambiental.
Desenhamos o Brasil em Ação e o Brasil não agiu; o Avança Brasil e o Brasil não avançou; o Programa de Aceleração do Crescimento e o Brasil não acelerou. Muitas vezes, a burocracia acha mais fácil entupir um bueiro com dinheiro que aceitar o preço do tampão da rede de esgoto. Com certeza, tal ciência ajudou a poupança pública e alguns trocados a mais andam guardados no tesouro. Mas que tem um bocado de gente vivendo na merda por conta disso, lá isso tem.
Observando as Barreiras, no produtivo oeste da Bahia, do alto dos Montes Claros, no noroeste das Minas Gerais, encontramos o traçado sem pavimento da rodovia federal Um Três Cinco, já que para cima, na direção do Piauí e do Maranhão, e para baixo, na direção da Zero Quarenta, o asfalto da rodovia existe e é bom.
Tanto num Estado quanto no outro, Bahia e Minas, bem entendido, seguindo o Rio São Francisco, as cavernas são tão abundantes que riscam o chão árido completamente, sulcam a terra, escondem a gente do lugar.
Os baianos, que são o povo mais tranquilo da terra, gostaram das cavernas:
- Aqui está bom, mulher.
- Pois tu estás louco, João. Eu não vou morar aqui.
- Pois tem quarto, sala e fossa natural. Vamos ficar.
Por perto, João e a mulher encontraram muitas preguiças, mas faltava gosto na carne e a sua caçada foi julgada difícil.
- Homem, deixa de ser preguiçoso.
- Mas o bicho é furtivo.
- Não caçoa de mim.
- Vou caçar, não.
No meio daquele sertão, a federal começou a ganhar forma, avançando quilômetros de terraplanagem. A obra seguia nos entremeios das cavernas, conforme previa o projeto e autorizara o IBAMA. Barracos de madeira e barracas de lona formavam um semicírculo que, juntamente com retro-escavadeiras, tratores, depósito de brita, areia e cascalho e alguns operários, formavam a vila do lugar.
Exigia-se um cuidado explícito com a fauna:
- Tem um funcionário do IBAMA – comentou o João - dizendo que vai passar uma estrada por aqui e querem saber da preguiça.
- Aquela que a gente comeu?
- Não, proibiram a gente de comer. Querem saber quantas preguiças já vimos por aqui.
- Eu só vi duas: uma, nós comemos; a outra, você sabe quem é.
- Num provoca com macheza, não.
E também com a supressão da vegetação:
- Patrão – era como chamavam o engenheiro-chefe -, encontramos uma preguiça numa árvore e precisamos derrubá-la. O que faremos?
- Vou lá ver.
Em pouco tempo, ajuntou-se toda a gente operária em torno da árvore, os olhos aguardando um movimento do animal.
- Nada??
- Nem se mexe. É uma preguiça.
- Vamos tirá-la daí. Com todo cuidado, que ainda é pouco. Leva pro meio da mata, dá uma empurradinha pra bem longe daqui.
- Não, patrão, é melhor chamar o funcionário do IBAMA.
Naquele dia, a obra parou. O IBAMA marcou na manhã seguinte e determinou que ninguém mexesse com o bicho, indefeso por natureza. Deixassem-no dormir, foi a conclusão. Alguns brincalhões resolveram organizar uma reza para que ele descesse antes e fosse dispensada a ajuda da entidade ambiental.
Não teve jeito. Estava lá o bicho quando a camionete chegou. A bióloga olhou de um lado, do outro, coçou a sua cabeça e a do animal, rumou em direção ao patrão e determinou:
- É uma fêmea, do tipo comum. O animal está ansioso e estressado com o barulho das máquinas e com o vespeiro humano. A ordem é tranquilizá-la. Desliguem todas as máquinas, suspendam o alarido, durmam. Ela deve descer por vontade própria. Esperemos.
Houve aplausos, por ser fêmea, e preocupação, por ser uma preguiça da Bahia. Até os baianos se engraçaram com a brincadeira da bióloga:
- Os baianos devem parar de trabalhar para curtir uma preguiça.
Mas não entenderam outra:
- Preguiça baiana é um pleonasmo.
Naquele dia, o único trabalho foi espiar o animal à distância, por recomendação. No seguinte, abriu-se um bolão para apostas. Valia um dia de folga para quando a folga acabasse e algum dinheiro para quando o dinheiro acabasse. O patrão ficou dormindo em seu barraco - o melhor, já reclamaram -, aguardando notícias:
- Nada?
- Nada.
- Me deixe dormir.
Nos primeiros dias, o bolão e as brincadeiras serviam de entretenimento, mas, depois, o bicho começou a chatear. Mais uma semana, a encher:
- Estou com o saco cheio. Vou derrubar a árvore.
- Não pode. Só com a autorização do patrão.
- E da bióloga – corrigiu outro.
Na manhã seguinte, encontraram, ufa!, o animal no chão. O primeiro palpite foi que a preguiça passara a noite dormindo em outro canto, porque, naquele momento, ela voltava para a sua árvore. Não fosse a descoberta de um paraibano:
- É um macho. A fêmea continua na árvore.
Alguém sugeriu empurrá-los para a mata. Outro entendeu que duas preguiças eram um assunto para o IBAMA federal. Alguém temeu pela volta da bióloga:
- Ela vai dizer que chegou a hora do amor.
- Do amor?
- É, do acasalamento. Os machos e as fêmeas só se encontram para isso – falou um entendido.
- E quanto tempo demora o acasalamento?
Nem ele, o entendido, soube responder. Tempo era uma dimensão vetada, no momento.
- Vamos empurrar para dentro do mato.
- É melhor derrubar a árvore.
- É melhor chamar a bióloga.
É melhor reforçar as apostas na preguiça.
O patrão ainda dormia.
Desconhecia as novidades.
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