Cão Maior era o presidente ali e não dava moleza para ninguém. Mesmo não fugindo comigo, o rapaz foi torturado na frente de todos.
O que você fará nas horas impacientes que antecedem domingo, vinte e oito de outubro de dois mil e dezoito, data do segundo turno das eleições presidenciais?
Se você não consegue pedir votos na rua, por alguma razão, sugiro então que peça na família ou na oportunidade que aparecer. Sendo bom cozinheiro, pode oferecer aos parentes um cozido feito na panela de ferro que não usa faz muito tempo. Os cortes e recortes de carnes e legumes se oferecerão como passatempo, a escolha do azeite pode exigir uma ida ao mercado, talvez distante do bairro - para passar o tempo. Na oportunidade, peça uns votos.
Chame os parentes e declare em voz alta que você teve uma ideia. Envolva-os em debates acalorados sobre o ponto das carnes, as vantagens dos legumes, os tubérculos e as raízes frescas, converse sobre os pimentões de duas ou três cores, as batatas inglesa e doce e inclua, em bom volume, lembranças de quando recebeu de presente da velhinha sua mãe a panela, pois ninguém, nem os mais antigos, é de ferro. Convide-os para ficarem em sua casa, preparando a empreitada e o almoço de domingo. Eles também devem estar impacientes com as horas que não passam, à espera do dia eleitoral de domingo. O discurso narrativo se resume em cozinhar o tempo, mandar whatsapps, encher o saco no facebook, tocar imeios para os amigos eleitores e, lógico, convencer os recalcitrantes da família.
Sendo professor, prepare suas aulas até o final de dois mil e dezoito - ou dois mil e dezenove, se você for aquele caxias com tudo planejado e pronto com antecedência. Metódica e metodologicamente, encontre novos argumentos, símbolos e metáforas para atiçar os neurônios da garotada. Consulte um livro que lhe venha à memória e seja catálogo de boas práticas educacionais. Isso levará seu relógio a domingo, sem que perceba. Não haverá necessidade de outra técnica para passar o tempo.
Mas não se esqueça de enviar whatsapps, encher o saco no facebook, tocar imeios para os amigos eleitores e, lógico, convencer os recalcitrantes da família.
Escolhi algo diferente para passar o tempo: contarei a linda história de meu cãozinho.
Recolhi-o de uma matilha. Aliás, se você não tem passatempo até domingo, nem se imbuiu da missão eleitoral, procure uma matilha e observe seus animais. Escolher um deles para sua companhia é bom passatempo até domingo. Depois, de pedir votos na família, claro.
Mas eu falava do meu cãozinho, o cãozinho que até então eu não tinha, mas que queria. Uma matilha que rondava o bairro se ofereceu para facilitar minha tarefa. Olhei os marmanjões, identifiquei o chefe da matilha e, em primeiro ímpeto, pensei em levar, ele próprio, para casa. A rapaziada estaria largada por uns dias, mas logo um quadrúpede dentre eles assume a tarefa, ungido pelos mais velhos ou de forma natural, com os animais simplesmente seguindo seus passos onde quer que fosse.
Passei, então, a observar como o chefe da matilha se relacionava com os seus comandados. Para conviver comigo tinha que respeitar seus semelhantes, ora bolas. Cachorros gostam de reinar no pedaço e, sendo desrespeitoso, vai o quê, me expulsar de casa?
Gostei dele, não. O desprezo e a arrogância lhe serviam de tapume para comportamentos piores, inaceitáveis. Humilhou uma cadela manca na minha frente, derrubando-a para simples diversão e riso dos seus capachos, um quarto da matilha, desprezíveis. No chão e desconcertadamente deitada, ela teve seus olhos arregaçados pelas unhas dele.
Depois, chamou um cachorro feinho - de fome, estava na cara - e o torturou na frente de todos, impedindo-o de respirar por longos períodos, pressionando ora o nariz ora a garganta, e riscando seu pelo com uma gilete, fazendo os cortes na forma de um desenho. Pensei ver as marcas de uma suástica, mas aí foi um excesso de minha parte. Os capachos se riam como eunucos celebravam os caprichos de César.
Desisti. Não quis levar o chefe da matilha para minha casa. Ia comer meu cozido, no mínimo.
Voltei minha atenção para a cadela manca. Provável vítima de atropelamento, a mocinha ficava sempre para trás nas mudanças de rumo da tropa. Quando chegava perto do chefe, era maltratada, como já visto.
- Olha lá, aquela vadia não merece ser estuprada? - disse o chefe, quando me aproximei para pegá-la. O pai dela deu uma fraquejada e saiu uma molenga.
O chefe soltou uma gargalhada e os capachos festejaram, gargalhando também. Podia levá-la para casa, como não? Um bom veterinário cuidaria de suas patas e ela, reconhecendo a generosidade do meu gesto, devolveria em alegria para minha família.
Cheguei perto, ela me olhou assustada e fugiu, correndo como nunca na direção do cachorrão, seu chefe.
Levou um pisão em uma das patas, reclamou da dor, ouviu:
- Sua vagabunda. Aqui nesta matilha, não tem essa de coitadismo, não. Honestamente, não sei o que você faz viva. Cadê minha espingarda?
Apareceu um capacho com a espingarda e lhe entregou. A bichinha, coitada, percebeu o perigo, tentou fugir às pressas, mas, sem as pernas que Deus lhe deu, levou um tirambaço nas costas.
Meu primeiro projeto de resgate canino restava morto. Os olhos esbugalhados da cachorra revelavam surpresa, mas a poça de sangue entregou seu fim.
Antes que o chefe belicoso saísse a matar mais bicho, atirando a ermo e com riscos até para mim, rapidamente, tratei de procurar outro animal.
Um belo menino, com cara de anjo e doçura, procurou meus olhos. Inteligente, percebeu o que eu fazia ali e se entregou. Perguntou se era com ele e eu confirmei.
Mais rápida que minha aproximação foi a reação do chefe da matilha:
- Virou meu inimigo?
- Não, Cão Maior – aprendi o nome do chefe nesse momento. Estou apenas querendo mudar de vida, se você concordar.
- Concordo, não. Quer uma sessão de tortura, quer ser estuprado, seu vagabundo!
Nem insisti. Percebi a rendição à autoridade. Cão Maior era o presidente ali e não dava moleza para ninguém. Mesmo não fugindo comigo, o rapaz foi torturado na frente de todos.
Para que ninguém mais se machucasse por minha causa, desisti de levar qualquer cão daquela matilha. Fiquei, também, com a pulga atrás da orelha. Educado por Cão Maior, os bichos daquela matilha, é provável, me dariam mais dor de cabeça que alegria.
Desesperançado, voltei ao meu carro. Uma linda cachorrinha preta, inteligente como ela só, vendo o que viu em mim, tratou de se desgarrar da matilha e se esconder perto de meu carro. Confiei nela. Não parecia educada por Cão Maior.
Perguntei o que fazia dali.
- Deixe de onda! Vamos embora! Você veio me buscar e cá estou eu. Balançou o rabo sem latir, para não chamar a atenção de Cão Maior. Abri a porta do carro e ela pulou dentro. Virou uma grande amiga. Mostrou-se rebelde, arisca e companheira dentro do carro e assim permanece até hoje.
De candidata à tortura e ao estupro, virou a princesa da minha família.
Mas, me perguntará o amigo leitor: o que eu tenho a ver com a sua cachorra, a sua princesa ou o que quer que seja?
Nada! Nada!
Não falo dela, amigo. O assunto é a matilha. Dependendo do que acontecer domingo nas eleições, levaremos uma vida de cachorro de rua por muito tempo e é bom a gente ir observando as matilhas ao nosso derredor, não acha? Eu, pelo menos, estou em boa vantagem.
Já sei que a de Cão Maior não me interessa.