Carta de um cidadão quase de bem.
Nós, moralistas, fomos longe demais. Nossa democracia está ferida de morte, nossa vida em sociedade continua piorando a passos largos.
Meu sentimento moral e meu senso político tiveram uma relação abusiva. E foi necessário passar por três eleições presidenciais, um impeachment e uma prisão para que ambos se libertassem. Nesse intervalo, senti-me cidadão de bem; indignado, mantive o nariz empinado, olhei a todos quase sempre de cima pra baixo. Xinguei, protestei, ironizei. Fiquei enojado com a política, entrincheirei-me. E, claro, não depositei um voto em quem quer que tivesse se corrompido, ou se aliado com corrupto, não importando seu programa ou orientação política.
Confesso que até 2002 as coisas eram diferentes. Cheguei a votar no PT e a torcer por Lula. Ele me sensibilizava quando falava em solidariedade, em acabar com a fome e reduzir desigualdades, em fortalecer a soberania social e não se deixar subjugar pelos Estados Unidos. Mas Lula também representava a esperança de moralização da política, o fim do toma lá dá cá. Vibrei quando ele denunciou os trezentos picaretas com anel de doutor. Depois de nos livrarmos de Sarney, Collor e das alianças espúrias de FHC e ACM, ver um presidente com essa disposição me animava muito. Acreditei que seus valores eram os meus, e sua indignação era a minha. Mas não, as coisas não eram bem assim.
Quando tive notícias das alianças e concessões aos mesmos Sarneys, Collors e Jucás de sempre, não tive dúvidas de que tinha sido traído. Minha moral ofendida gritou e esperneou. Fiquei enojado. A traição autorizava todo afastamento e toda retaliação ao traidor. Indignado, amaldiçoei a própria política. Denunciei e condenei cada contradição, enxerguei mau-caratismo em cada ato. Jurei nunca mais votar em Lula nem no PT. Anulei votos, votei até na direita pra tirar os petistas do poder. Até que veio o impeachment e, junto com ele, uma pulga atrás da orelha.
Quando vi que todos os meus inimigos tinham um inimigo em comum, e esse inimigo era o lulopetismo, uma luz de alerta acendeu no painel de minha consciência. As campanhas antipetistas chegaram a tal ponto na mídia, nas redes sociais e no judiciário que levantaram suspeitas. Dei uma olhada nos números dos governos, nas pesquisas de opinião. Do nosso lado, sempre editoriais e opiniões de duvidosos especialistas a transbordar de êxtase pelas sucessivas condenações ao PT, sempre em nome de uma certa moral, sempre em nome do combate à corrupção, que ocupara o lugar da política com P maiúsculo. Precisei de um tempo para cair a ficha.
Que moral era essa que me fez achar que eu poderia, em nome da maioria, dizer o que é melhor para o país? Que me fez relativizar o resultado das urnas e deslegitimar intenções de voto? Sim, os governos do PT tinham muitos problemas. Suas alianças e escândalos davam nojo, mas também é verdade que ampliaram serviços públicos e, é preciso reconhecer, deixaram um legado bem avaliado pela maioria da população. E o combate à corrupção que serviu para afastar o PT do governo, serviu também para impor à população um programa político oposto ao que fora aprovado nas eleições e que conta com enorme rejeição popular. Por outro lado, o rigor que levou à deposição do PT não serviu igualmente para extirpar a corrupção dos demais partidos - e as evidências dessa seletividade punitiva estão escancaradas até na mídia mais tradicional. E, pior, a caçada ao lulopetismo, identificado como grande vilão nacional, acabou promovendo um clima de ódio, e fez ascender uma perigosa horda de intolerantes, abastecidos de notícias falsas.
Apesar das aparentes vitórias, era preciso sair do sono antipetista e reanimar meu senso político. Para isso, não precisei me tornar complacente com a corrupção, bastou perceber que o sentimento de traição não justifica qualquer coisa e, principalmente, não autoriza o ódio.
Ao me sentir traído, lá atrás, eu tinha razões para querer me afastar, pensar em outras alternativas. Mas não para violentar e eliminar o traidor, muito menos para esquecer de valores democráticos e humanos que sempre foram caros pra mim. Tampouco era razoável querer impor a todos minha indignação. Foi minha moral ferida que me fez crer que meu voto era melhor que o do eleitor do PT, que eu tinha mais razão. E esse sentimento se fortaleceu quando encontrou ressonância no de juízes, procuradores e outras figuras de prestígio. Pelas lentes de um homem traído, submeter o PT e seus representados a um tratamento desigual, dobrar instituições e subjugar segmentos da população soavam como atos de justiça em prol de um futuro melhor. Cego pelo ódio, uma dose relevante de casuísmo parecia justificada. Além do que, é fácil tolerar abusos contra desafetos, ainda mais quando eles têm apelo moral e verniz constitucional.
Tardou, mas despertei. Percebi que, ao apoiar arbítrios contra Lula e o PT, eu me tornara o elitista, autoritário, antidemocrático que sempre condenei. Vi a imoralidade do que cometera envenenado pelo sentimento de traição. Foi meu senso político, afinal, que libertou minha moral. A prisão de Lula me entristeceu. Nós, moralistas, fomos longe demais. Nossa democracia está ferida de morte, nossa vida em sociedade continua piorando a passos largos. É hora de recompor a relação entre moral e política. Uma democracia se faz com instituições fortes, e submetidas à soberania popular. Nesse sistema, apenas representantes eleitos têm mandato para falar em nome de seus representados, sendo particularmente ilegítimo que intérpretes da lei se arvorem a ajustar decisões ao sabor do que entendem ser os sentimentos das ruas.
Pela democracia, moral e política precisam se reconciliar. É preciso superar uma história de traição. Até porque, neste caso, o que foi traição para mim, pode não ter sido pra você. A quem recorrer se não a cada um de nós?