O discurso sobre o Estado brasileiro deve evitar a cantilena neoliberal que, ao amplificar sua negatividade, busca reduzi-lo, deixando-nos cada vez mais à deriva de forças “impessoais”, da lógica concorrencial do chamado mercado que nunca confunde os bolsos.
A situação do Brasil atual impele qualquer pessoa minimamente progressista a experimentar um mal-estar diário, permanente. Uma pergunta não nos deixa em paz a cada momento: o que fazer? Somos das práxis, condenamos o lero-lero intelectual, o acomodamento que remete à elite colonizada, ao conforto alienado. Mas o que fazer? Todo dia tem retrocesso, mortes, injustiças claramente mitigáveis, dores remediáveis a doerem, desamparo... e os reflexos do “grande acordo nacional”.
O que fazer? Cada um deve saber das suas próprias possibilidades como indivíduo. Mas como coletivo organizado, o que fazer? Essa reflexão antecede a firmeza de qualquer ação de partido, movimento social, frente de esquerda ou coligação. Esse fazer ao qual devemos nos engajar tem que poder fazer a diferença, tem que ajudar a nos tirar da rota do caos social, tem que melhorar a vida das camadas historicamente subjugadas. Tem que brecar o retrocesso e oferecer um futuro mais digno às próximas gerações.
Certamente, esse algo a fazer que procuramos não pode se encerrar em nós mesmos. Tem que envolver a médica, o professor, a vendedora da loja, o trabalhador da roça, a mina que faz quadrinhos, o pastor, a presidiária. Mas quais propostas concretas de ação os engajaria?
Parte da resposta permanece em aberto, mas em alguma medida é necessário discutir o Estado brasileiro. Não podemos nos dar o luxo de relegar o debate sobre as entranhas desse monstro burguês organizado em três poderes que todo dia nos arranca as energias, mas no qual, ao mesmo tempo, depositamos esperança. Dele vêm as leis, a propriedade, o dinheiro, a bala, a seringa, o idioma. É preciso compreendê-lo já, para transformá-lo com vigor.
Sim. Argumentamos que devemos voltar a discutir o Estado e elaborar uma proposta ousada e factível, que faça sorrir nosso espírito combativo, que dialogue com a realidade social que está aí para impulsionar-nos a uma outra sociedade. Sem perder de vista um horizonte utópico, precisamos saber como construir um caminho possível, plausível e concreto de mudança. Apontar um caminho que possa produzir ressonâncias na sociedade brasileira, para além dos já convertidos.
Reconhecemos as mazelas do Estado brasileiro: patrimonialista, conservador e elitista, racista, misógino, autoritário, ineficiente, corrupto etc. Contudo, dada nossa condição política e social, e nossa inserção no cenário internacional, não podemos abdicar do Estado para a promoção da transformação social, da justiça, da soberania e autodeterminação popular e, sobretudo, para o combate às abissais desigualdades que temos que enfrentar. Devemos evitar a cantilena neoliberal que, ao amplificar a negatividade do Estado brasileiro, busca reduzi-lo, deixando-nos cada vez mais à deriva de forças “impessoais”, da lógica concorrencial do chamado mercado que nunca confunde os bolsos. Nesse sentido, propomos, para subsidiar a elaboração de uma proposta para o Estado brasileiro, as seguintes balizas:
1. O ESTADO NÃO PODE SER VISTO COMO “MAL A SER COMBATIDO”
O Estado brasileiro não é algo apartado da sociedade. Não se pode achar que a uma sociedade problemática estará associado um Estado eficiente, potente e justo. A sociedade não é algo que vai a reboque do Estado. Não podemos esperar a construção de um Estado perfeito que transforme a sociedade, nem tampouco que a sociedade primeiramente corrija suas mazelas para, então, produzir um Estado desejável. Ambos estão intimamente relacionados e, numa sociedade tão desigual e injusta como a brasileira, é central o papel do Estado na contenção da fome, da violência e da exclusão. É impensável que os efeitos produzidos pelo SUS, Bolsa Família, PROUNI, Luz para Todos etc. poderiam ser igualmente alcançados pelas forças do mercado, sem um direcionamento político bancado com recursos públicos. E isso não significa que a sociedade civil deve ter papel secundário.
Com isso, queremos dizer que, para pensar o Estado brasileiro, não devemos enxergá-lo como negatividade à qual nos opomos. Essa leitura invariavelmente leva a menos Estado, mais lógica concorrencial, mais restrições e controles ao gasto – o que trava e inviabiliza políticas públicas de vulto. Justamente por aumentar as restrições ao gasto e enfocar-se mais nos desvios de recursos do que nas conquistas dos usuários dos serviços públicos, a visão do Estado como negatividade acaba sendo uma profecia autorrealizável, levando a mais restrições e menos Estado. Assim, perpetuam-se as mazelas, permanece um Estado estéril e um mercado cuja lógica volta-se à exploração e à exclusão social.
2. O PATRIMONIALISMO NÃO É UM BOM PONTO DE PARTIDA
Não se trata de negar que há patrimonialismo no Brasil. Mas de saber que, sob essa lente, não veremos senão um Estado inapto a combater desigualdades e injustiças. O patrimonialismo não é essência do Estado brasileiro, é uma chaga a ser combatida no dia-a-dia, e pelo próprio Estado. Cada juiz, ministro, procurador, auditor, secretário etc. que representar, no exercício de suas funções públicas, os interesses de suas empresas, famílias e castas, deve ser excluído das fileiras estatais.
O Estado deve ser ocupado por brasileiros e brasileiras de todas as origens, raças, credos, opções sexuais etc, deve ser cada vez mais plural, potente e voltado a quem mais precisa. Mas isso não ocorre da noite para o dia. É preciso ir transformando-o, potencializando-o, enquanto transforma-se também a sociedade, em uma relação de amadurecimento mútuo e contínuo, e sem se deixar contaminar pela profecia autorrealizável de um Estado estéril e uma sociedade inapta à justiça e à paz social.
Entendemos que a construção de uma proposta de Estado para o Brasil não deve partir do diagnóstico do patrimonialismo, o que apenas induziria a pensar soluções de diminuição, controles e fiscalização das ações estatais, esterilizando ainda mais nossas instituições. Pelo contrário, é preciso atentar para as funções estatais subfinanciadas, para a urgência de milhões de brasileiros que aguardam para terem direitos assegurados, para as capacidades de nichos estatais que, mesmo na contracorrente e com poucos recursos, fazem a diferença de milhões de brasileiros assegurando-lhes alguma cidadania. Se partirmos daí, possivelmente poderemos repercutir histórias de sucesso, valorizar experiências de solidariedade e senso cívico, reforçar a importância das instâncias coletivas, constranger egoísmos e reafirmar a esperança de que um outro Brasil é possível.
3. A CORRUPÇÃO TAMPOUCO É UM BOM PONTO DE PARTIDA
Semelhante ao que ocorre com o patrimonialismo, precisamos evitar olhar o Estado apenas pelo prisma da corrupção. Ela existe, é horrível, deve ser combatida. Mas ela não pode ser a chave da Transformação do Estado brasileiro. É preciso ampliar as formas de combate à corrupção: polícias, educação, debate público, imprensa investigativa, órgãos de fiscalização estatais e instâncias de fiscalização e controle da sociedade civil. Mas isso não implica em fazer do combate à corrupção a base de uma proposta de Estado, pois essa pauta, da forma como está se dando hoje no país, tem induzido discursos neoliberais, o fortalecimento de castas burocráticas, a elitização e a redução ou esterilização das funções estatais.
A mídia tradicional conseguiu impor a pauta da corrupção como centro do debate nacional, e esse não é um debate a ser evitado. Mas daí não deve resultar um diagnóstico negativo nem da sociedade, nem do Estado brasileiros. A corrupção não pode ser vista como um traço do brasileiro, repetido e amplificado no Estado. A corrupção não é uma questão meramente moral dos indivíduos, nem tampouco algo que se associa à identidade nacional. Esse é um discurso conservador que não nos serve.
Podemos, sem complexo de inferioridade, ver a corrupção como um fenômeno relacionado a sociedades muito desiguais, em um contexto de exacerbação de valores neoliberais. Superá-la requer mais igualdade, mais politização e mais consciência da importância da coletividade frente aos interesses particulares. Não se extirpa a corrupção a partir de discursos moralistas e autoritários, nem a partir da espetacularização de escândalos, nem pelas mãos de justiceiros messiânicos. Combater a corrupção requer tempo e investimentos em redução de desigualdades, educação, promoção de direitos, democratização ampla do espaço social, promoção da consciência política, valorização do diálogo e da pluralidade de ideias, o que, por sua vez, requer um Estado cada vez mais atuante, republicano e democrático.
4. É PRECISO DESMISTIFICAR A MERITOCRACIA
Primeiramente, cabe ressaltar que o fato de haver um corpo de agentes selecionados e nomeados para falar em nome do Estado – os servidores públicos – não quer dizer que o resto da população deva ficar alienada das decisões do campo estatal. Dito isso, devemos desmistificar a meritocracia, seja como critério de seleção para postos estatais, seja como meio de hierarquização e obtenção de privilégios na sociedade.
Em sociedades muito desiguais como a nossa, é ilusão pensar na competição livre entre as pessoas de todas as classes, gêneros, raças, regiões etc. Num contexto de grande desnível cultural e material entre os diversos grupos sociais, supor que há competição de igual para igual é uma maneira de promover a injustiça e condenar parte da sociedade a acostumar-se com uma situação de subcidadania. A meritocracia, nesse contexto é um grande mito, com efeitos muito nocivos.
Precisamos, portanto, alterar os critérios, e repensar o que chamamos de mérito, deixando, primeiramente, de associá-lo ao desempenho em provas. É preciso considerar aspectos mais amplos do histórico pessoal e coletivo, competências e habilidades, e evitar a perigosa confusão entre merecimento e desempenho que pode levar a crer que certos grupos quase sempre merecerão ter menos acesso a determinados empregos ou cargos.
Se é verdade que as classes média e alta, em geral, têm desempenho melhor em testes e concursos para cargos mais bem remunerados e de maior prestígio, isso não é por questão de “mérito”, mas porque a régua que mede desempenho é feita pelo Estado e suas instituições, e estão dominadas por essas mesmas classes média e alta. Os saberes que os menos privilegiados têm a mais não são devidamente levados em conta nos concursos “meritocráticos”. Ou seja, a confusão entre merecimento e desempenho é uma forma de manter privilégios.
Assim, desmistificar essa meritocracia rasteira é uma forma de recuperar a autoestima de grupos subjugados da população brasileira, que foram excluídos ao longo de gerações. Se a meritocracia pretende consagrar aqueles bem sucedidos em competições de igual para igual, é preciso, primeiramente, discutir os critérios que permitiriam falar em igualdade de condições para competir. É preciso discutir esses critérios com os segmentos sociais historicamente excluídos. Possivelmente, para que estes grupos se vejam como iguais, eles precisam antes, e não depois, ocupar os mesmos espaços e ter acesso aos mesmos bens materiais e culturais que seus históricos competidores.
É através da meritocracia que parte da classe trabalhadora mostra sua intolerância com os mais pobres e sua complacência com os mais ricos. Ao desejar que políticos sejam “técnicos”, que se cerquem e ajam como técnicos e neguem a política, apenas mantêm-se privilégios relativos das classes abonadas, destruindo mais ainda a autoestima e as esperanças de quem sempre esteve marginalizado, e destruindo as escadas que poderiam ser usadas para subirem a um patamar mais igualitário, mais próximos aos verdadeiros patrões.
A meritocracia é uma ideologia da desigualdade. Grande parte dos brasileiros aprendeu a defender a técnica, o trabalho e o mérito e a condenar a política e os benefícios fornecidos pelo Estado. Parece científico, parece racional, é confortável, mas é uma forma disfarçada de dizer que não é aceitável sermos coletivamente solidários aos mais pobres e excluídos.
É urgente combater essa ideologia meritocrática dentro e fora do Estado. Mas é dentro do Estado que a luta deve ser mais intensa, pois é ali que se pode desarmar sua reprodução, que se dá por meio da definição de currículos, da formatação do sistema educacional, de ementas de cursos e concursos, da linguagem nos atos oficiais, manuais e relatórios, da seleção de instrutores nos cursos ofertados a servidores públicos e à sociedade civil etc.
5. JÁ QUE NÃO EXISTE “TÉCNICA NEUTRA”, QUE O ESTADO SEJA PLURAL
Cada linguagem, cada técnica, cada forma de fazer as coisas traz embutida em si uma visão de mundo, uma maneira de ordenar as coisas, de acentuar certos aspectos e obscurecer outros, de favorecer certas ações em detrimento de outras. Isso vale para os procedimentos burocráticos: orçamentos, políticas públicas, notas técnicas, pareceres, legislações, sentenças, ementas, projetos, denúncias etc.
Mesmo questões estritamente técnicas contêm, quando na esfera pública, um lado político. Devem, portanto, ser debatidas publicamente. A complexidade dos assuntos não pode servir de pretexto para que um grupo social os monopolize. É nocivo às camadas populares o isolacionismo dos tecnocratas, que muitas vezes desafiam comandos constitucionais e hierárquicos (de lideranças eleitas), apoiando-se sob uma suposta técnica de alta complexidade. Não raro, esse escudo serve a interesses ilegítimos, inconfessáveis na esfera pública.
Isso vale, sobretudo, para os campos jurídico e econômico, mas aplica-se a toda burocracia estatal brasileira. Ora, se a estrutura do orçamento não consegue priorizar os pobres desse país, que se mude a estrutura do orçamento; se as formas de fazer regulamentação fundiária não são compatíveis com uma reforma agrária, que se mudem as leis que estruturam a questão fundiária; se a estrutura judiciária não consegue fazer justiça para a maioria da população, que seja mudada etc. Tudo que está aí foi feito por pessoas, e pode ser desfeito ou refeito.
Defendemos, portanto, que os “técnicos” do Estado brasileiro sejam desafiados a explicitar suas posições ideológicas, que reconheçamos as motivações políticas que estão por trás dos pareceres “técnicos” e que tais posições sejam expostas ao debate público. É preciso que as ferramentas, linguagens e pareceres estatais sejam disputados também pelo campo popular, para que se retire o verniz de neutralidade que reveste as posições mais conservadoras que dominam o Estado brasileiro. Longe de um Estado neutro e imparcial, é preferível um Estado plural, que busque considerar as diversas perspectivas que coexistem na sociedade brasileira, buscando soluções, arranjos decisórios e medidas que não privilegiem um segmento em detrimento de outro.
6. DEVEMOS REJEITAR A OPOSIÇÃO ESTADO X SOCIEDADE CIVIL E TRANSFORMAR LÁ E CÁ, COLETIVAMENTE E SIMULTANEAMENTE
Não podemos cair na armadilha de nos colocarmos ao lado da fragilizada sociedade civil contra um Estado perverso. Precisamos quebrar essa dicotomia e disputar ambos, pois fazem parte dos problemas e soluções com que se depara a sociedade brasileira. A dicotomia Estado/Sociedade deve ser evitada como informante de uma plataforma de Administração Pública ou de transformação do Estado. Importa que tanto a sociedade quanto o Estado em cada uma de suas instâncias sejam disputados democraticamente e concomitantemente e por pessoas engajadas, isso envolve os três poderes da República, as empresas, as ONGs, as universidades, as comunidades etc.
Não é que há Estado de um lado e sociedade de outro. Há forças progressistas e conservadoras lá e cá, e uma estrutura estatal que filtra diferentemente demandas e atendimentos a determinados segmentos sociais. O que se coloca é a necessidade de transformação e democratização lá e cá, sem posições etapistas ou sectárias que visem primeiro a mudar a sociedade, para só depois se abordar o Estado, ou vice-versa.
Uma pergunta que devemos nos colocar é: quais forças sociais acessam quais recursos do Estado? Por exemplo, podemos afirmar que a mídia tem acesso à formação da agenda; que os banqueiros e grandes detentores de capital financeiro direcionam as políticas fiscal e monetária; que conglomerados de educação particular incidem sobre currículos e conteúdos escolares etc. Adicionalmente, há setores estatais que transferem para o campo institucional o interesse de setores particulares da sociedade. Por exemplo, Ministério da Fazenda faz seus os interesses do capital financeiro; o Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento faz seus os interesses do agronegócio etc. Refletem, assim, distorções representativas presentes no parlamento. Ademais, há a luta da alta burocracia pela preservação de seus próprios privilégios – o que se reflete não só nas causas corporativas imediatas, mas também na forma com que cada carreira busca monopolizar o acesso a determinadas fatias do Estado.
Ao abandonar a dicotomia que se apresenta sob a forma de “precisamos mudar a sociedade para mudar o Estado”, e olhar o Estado como um espaço em que forças estatais e não-estatais lutam para controlar seus recursos, podemos pensar quais recursos estatais devemos prioritariamente disputar para atender as demandas populares. A partir daí podem-se construir regras institucionais que refaçam a relação entre burocracias específicas e segmentos sociais, retirar filtros, e fazer com que os instrumentos reflitam e se moldem para atender essas demandas. Trata-se de construir instrumentos que democratizem o acesso aos recursos públicos, que se imponham sobre o poder dos grandes lobbies historicamente detentores das atenções do Estado.
A mobilização da sociedade civil é um caminho fundamental para reequilibrar sua relação com o Estado. Não se pode alienar a população quanto ao Estado. É preciso institucionalizar novas práticas que abram o Estado a perspectivas de segmentos historicamente invisibilizados, de modo que elas mesmas possam induzir ao fortalecimento dos segmentos estatais que, incidindo sobre certos recursos públicos, cumpram seu papel social.
A participação social deve ser potencializada em formas de construção coletiva. É preciso estar ciente de que o “fazer com” não muda automaticamente o “como fazer”, isto é, a forma de se processar as demandas nas entranhas do Estado. Para dar eficácia à soberania popular, esse “como fazer” (com quais agentes, quais normas, quais prazos, quais recursos) precisa ser também analisado, compreendido e transformado coletivamente, conferindo significado político aos resultados daquilo que foi coletivamente pleiteado e à forma como será atendido.
É preciso sair de um modelo de participação que aponta diretrizes a segmentos específicos do Estado e passar a uma visão de construção coletiva dos instrumentos, que possam carregar novos valores. Simultaneamente, ao construir uma infraestrutura, uma regra ou um instrumento de gestão, é preciso transmitir o significado dela no nosso contexto social. Importa a politização da sociedade para uma compreensão ampliada das grandes disputas entre classes e ideologias, e como estas se refletem nas mais discretas institucionalidades.
Enfim, o Estado não é uma máquina insulada, autônoma, mas tampouco deixa de ter um grau de autonomia, e, portanto, deve ser democrático não apenas na recepção de demandas, mas também na sua constituição interna e em seus mínimos procedimentos. Portanto, acreditamos que o caminho de sucesso para o país não se esgota nem se democratizarmos apenas o campo estatal, nem se democratizarmos e politizarmos apenas as ruas e organizações não governamentais. É preciso trabalhar lá e cá. Devemos debater suas interseções, suas sobreposições, seus imbricamentos e, a partir daí, encontrar soluções que enxerguem o Brasil e a América Latina como um todo a ser curado de suas graves chagas.
7. DEVEMOS REJEITAR UMA LEITURA A-HISTÓRICA DO ESTADO
As coisas do mundo social não nasceram da forma como nós as encontramos, elas possuem uma história de controvérsias e disputas, escolhas e acasos antes de chegarem a ser como são. A forma como a sociedade enxerga a si mesma e às suas instituições possui uma história marcada por discursos e propagandas falaciosos. As relações dos brasileiros com a Europa, com os Estados Unidos, com a Bolívia e com Angola têm uma história, elas foram feitas e podem ser mudadas se quisermos e buscarmos essa mudança.
A Lei de Responsabilidade Fiscal sancionada em 2000 não existiu sempre, um dia ela foi debatida, questionada e criticada. Ela poderia ter sido diferente, poderia não ter existido. Se hoje ela está aí da forma que está, é porque houve uma disputa e uma série de opções foi preterida. Essas escolhas não devem ser apagadas da história, muitas vezes essas possibilidades deixadas de lado pelos decisores do momento podem revelar-se importantes. É importante enxergar o Estado a partir dessa construção histórica, resgatar as disputas e as possibilidades que foram bloqueadas pelas correlações de força em cada período.
Devemos despertar a capacidade de estranhar instituições que hoje aparecem como “quase naturais”. As polícias, o uso de terno e gravata, a quantidade de cargos e ministérios, a forma de legislar, o Banco Central, o jeito de licitar, de comunicar, de debater com a sociedade, de nomear, de homologar etc. Tudo tem uma história, tudo é datado, tudo pode ser transformado desde que saibamos enxergar, ver outras possibilidades, caminhos de questionamento e mudança. Precisamos desnaturalizar os instrumentos e técnicas a partir de uma história que compreendamos e na qual nos enxerguemos e, a partir daí, desenvolver a capacidade de propor novas lógicas que deem sentido aos estatutos, novos estados de coisas que nos leve a uma sociedade mais igualitária.
8. O ESTADO NÃO É SÓ INTERESSE DE CLASSE, PODE SER RESISTÊNCIA E TRANSFORMAÇÃO
O Estado não deve ser entendido só a partir do interesse de classe. Nem tampouco deve ser equiparado a um Estado do bem-estar social. Seus contornos dependem da luta para controlar recursos simbólicos e materiais que se expressam, sobretudo, no poder de dizer oficialmente aquilo que é o interesse público, de alocar orçamento, de homologar identidades sociais, de conferir regularidades ou irregularidades a determinadas práticas etc.
Enfim, o Estado não é apenas o reflexo da dinâmica da sociedade. Ele não está preparado para os objetivos que são validados nas urnas. Ele não tem essência, mas é construído e pode oferecer resistências à vontade tanto de pobres quanto de ricos. Ele é produto dos investimentos que os segmentos sociais fazem em sua estrutura, a partir da ocupação de postos, de pressões, de cooptações, e de intervenções de toda sorte. O alvo desse investimento é o acesso a recursos públicos e ao poder de falar em nome do público. Historicamente esses investimentos vieram das classes dominantes, com uma perspectiva elitista.
É preciso, portanto, suspender os discursos hegemônicos do Estado sobre si mesmo e incidir diretamente em seus pressupostos e definições. Quem deve falar em nome do público? Quem está sendo falado por quem? Quem está silenciado? Quem tem o poder de escrever e assinar o ato oficial? Qual é a linguagem? Quem ela exclui? Quais são os limites e possibilidades dos agentes públicos? Quais são os pressupostos de sua conduta? Quem controla os espaços e tempos do Estado? Como os discursos oficiais se associam à busca de uma sociedade mais igualitária? De onde vêm os recursos públicos? Para onde vão? Onde está o pobre no orçamento? Quem define o percurso dos recursos regulados pelo Estado?
De certa forma, os governos Lula e Dilma não reinventaram o Estado, modificaram-no em alguma medida, certamente. Mas não o prepararam para processar enormes demandas populares. Muitas dessas demandas foram interditadas, não pela correlação de forças na sociedade, mas por regras institucionais que se dizem neutras, mas cujos efeitos inviabilizam políticas públicas aos que mais necessitam. São regras que resultam de investimentos das classes dominantes. Assim, se é verdade que muitas mudanças institucionais foram realizadas, observamos que muitas das soluções adotadas nos governos petistas foram à base da exceção às regras, e não na produção de novas regras. A política fiscal é o caso mais ilustrativo. Longe de ser uma má solução, tendo em vista o senso de urgência em fazer com que a máquina obedecesse ao mandato presidencial, não são suficientes para uma política de transformação social de maior duração.
9. É PRECISO DISPUTAR OS SENTIDOS, AS PALAVRAS OFICIAIS E OS RECURSOS DO ESTADO
Numa visão em que o Estado representa uma grande arena de disputa por recursos públicos, tais como orçamento, projetos, certidões, legislações, pessoal etc, é preciso adentrar essa arena e disputá-la. Nessa perspectiva, um dos recursos estatais mais disputados é a palavra oficial. É o Estado, através de seus legítimos agentes, que tem o poder de proclamar quem é absolvido ou condenado, o que é legal ou ilegal, o que é regular ou irregular. É o Estado quem tem o poder de definir o que é de interesse público ou particular, o que é um problema social ou privado, quais são as prioridades da sociedade brasileira e qual é a hierarquia de valores que deve prevalecer.
Todo esse poder do Estado é manifestado através das palavras de agentes públicos, escritas aos milhares todos os dias. Essas palavras, convertidas em atos oficiais, podem transformar ou preservar situações sociais. As palavras canalizam os recursos materiais, canalizam a violência, canalizam os preconceitos. É urgente, portanto, disputar essas palavras em cada ato de cada burocrata em qualquer mesa de qualquer escalão. Essas palavras devem deixar de amplificar distorções sociais e passar a promover a solidariedade e a justiça social.
As palavras, se articuladas devidamente, podem fazer mágicas, como transformar um ato corriqueiro de gestão em pedalada fiscal e depois em crime de responsabilidade... ou, por outro lado, associar educação e saúde para trazer médicos cubanos e levar atendimento sanitário a mais de 60 milhões de brasileiros. Mas, para tanto, é preciso adentrar o campo estatal, é preciso avançar entre as burocracias, é preciso ocupá-las com a consciência de que as palavras oficiais podem constituir o principal vetor de redução de desigualdades do país. Cada juíza, procurador, analista, escrivão etc. deve ser um agente de transformação, um agente de defesa da coletividade sobre o capital, do social sobre o egoísmo neoliberal. Mas para tanto, devemos elaborar coletivamente nossas teses sobre a ação estatal em todos os detalhes, discuti-las e disseminá-las exaustivamente.
Não queremos com isso, por exemplo, diminuir o poder que emana de certos segmentos sociais através da mídia, nem tampouco é possível minimizar a influência do capital financeiro na esfera estatal. Mas é necessário entender que mesmo poderosos segmentos, em alguma medida, não podem falar legitimamente em nome do público, dependem de agentes públicos e palavras oficiais. O banqueiro dependerá sempre do servidor público para materializar seus interesses em palavras oficiais.
O caso aqui é saber usar o espaço público para que o Estado não continue impondo, a todos, sentidos de um interesse público que só serve a uns poucos e, para tanto, devemos disputar o controle da narrativa oficial, necessariamente estatal. É preciso disputar o poder de falar, não se deixar pautar pela agenda tecnocrata (meritocrática e neoliberal, em sua essência), dar a fala a segmentos historicamente silenciados – eles devem deixar de ser falados por minorias privilegiadas; é preciso valorizar a pluralidade, a política, e o debate público amplo em linguagens não excludentes, explicitar e iluminar as crenças e pressupostos em cada posição adotada nos atos oficiais. Em suma, é preciso democratizar o acesso à palavra oficial.
10. O ESTADO NÃO É SÓ ECONOMIA, NEM PODE SER SÓ CULTURA
As palavras oficiais são importantes, mas não são tudo. É preciso incidir na economia, alterar a ordem material da sociedade, alterar os padrões de uso do dinheiro público. Se não se deve cair na armadilha do materialismo – e achar que tudo será resolvido pela economia –, também não podemos cair na armadilha do culturalismo, e achar que apenas corrigindo os discursos, os padrões comportamentais, as palavras, iremos resolver os problemas que hoje nos assolam. É preciso falar dos valores humanitários, e propagar a ideia de solidariedade e de igualdade. É necessário politizar, para que os brasileiros que possuem – e mais ainda os que foram historicamente despossuídos – entendam seu contexto, sua trajetória, e de que lado estão nas disputas ideológicas intrínsecas ao capitalismo brasileiro. Mas é imprescindível incidir na economia e garantir que os recursos materiais produzidos pela sociedade sirvam às transformações sociais desejadas pela classe trabalhadora.
Para incidir na economia, o problema não é teórico. Não é apenas uma luta entre neoclássicos e keynesianos. As restrições fiscais materializam esquemas classificatórios que determinam os sentidos da gestão econômica. Por exemplo, as regras atuais ditam que diante de uma crise, a queda de receitas só pode ser respondida com ajuste nas despesas, do contrário a gestão fiscal é automaticamente classificada como em desacordo com os pressupostos da responsabilidade fiscal.
Logo, deve-se pensar em novas práticas que inscrevam na realidade institucional novos valores. Por exemplo, permitindo reduzir o resultado primário em momentos de crise. Não encarar essa discussão de frente foi central para a construção da imagem sobre os governos Lula e Dilma. Pois se procurou mecanismos de flexibilização dos procedimentos de gestão sem refazer o “discurso” e a “prática” da área. Num projeto progressista, responsabilidade fiscal não pode significar apenas compromisso com a meta fiscal. É preciso ressignificá-la. Nesse sentido, ao não refazer as regras e incidir das hierarquias e esquemas classificatórios, pode-se dizer que, apesar de perder as eleições, os recursos seguiram controlados pelo neoliberalismo.
É preciso trazer valores solidários à economia, e produzir uma economia de fato solidária: fazer o dinheiro público chegar a quem precisa, fazer cessarem as explorações desregradas da natureza, sanar a fome, reduzir a pobreza, redistribuir os bens e recursos que são produzidos e estão estocados na sociedade. E devemos ter claro que, ao conceder qualquer benefício social, devemos apresentar ao beneficiário o seu significado político, fazer com que a reversão das desigualdades materiais altere a cultura, combatendo a mentalidade neoliberal. Para tanto, devemos discutir exaustivamente os sentidos do Estado, da política econômica e demais políticas públicas com a população, sem com isso deixar de fazê-las ou deixá-las para depois por impedimentos burocráticos.
11. É PRECISO SENSO DE URGÊNCIA
Devemos nos indagar: é preciso piorar a vida no presente pra melhorar no futuro? É preciso mais sacrifícios das parcelas mais pobres e excluídas do Brasil? Porque aí se apoia o receituário neoliberal que enfrentamos hoje e enfrentaremos amanhã. Acusam-se os governos progressistas que melhoraram um pouco a vida dos pobres e excluídos de irresponsáveis, praticantes de uma política social insustentável. Como se alterar a ordem social fosse incorrer em maldição. É preciso desde já acabar com esse dispositivo que preenche a cabeça e o discurso das forças mais cínicas e inescrupulosas da vida pública nacional.
Os governos Lula e Dilma só são responsáveis pelas desgraças que continuaram a assolar o país na medida que deixaram de enfrentá-las. Os maiores erros se deram quando não foram encarados de frente os interesses racistas, machistas, homofóbicos, ladrões, capatazes, oligarcas, financistas que viviam a assediar o Executivo, o mais das vezes a partir do Legislativo. Não se trata de não fazer alianças, de não ser pragmático, de não fazer concessões. Trata-se de não adiar, não colocar em segundo plano, não “desescolher” as lutas que valem à pena.
Deve restar claro que a resolução dos problemas graves que temos que enfrentar não pode depender de soluções institucionais perfeitas. Sempre há um tecnocrata conservador a apontar algum defeito de ordem institucional, que se manifestaria no longo prazo caso fossem adotadas medidas imediatas para estancar a dor do agora. Mas é preciso ser solidário àqueles que sentem essa dor. O “fazer justiça” não pode ser representado pela coerência dos dispositivos institucionais, as contradições são toleradas quando úteis a combater o sofrimento que nos incomoda hoje. Se há uma injustiça que pode ser remediada hoje, não há porque não fazê-lo. Chega de institucionalismo, quando se trata de estancar a sangria do pobre, do preto, da mulher, do excluído. Note-se que esse mesmo discurso nunca é suficiente para deter aqueles que dobram as instituições quando se trata de atender demandas urgentes de segmentos privilegiados. Golpes passam a ser tolerados desde que se atendam demandas do grande capital e outros segmentos privilegiados.
Não se trata aqui de defender a ilegalidade, é a lei mesma que deve ser alterada quando se opuser à justiça social. E deve fazê-lo com a mesma urgência com que se levantaram historicamente contra os atos de interesse popular. Pensar o Estado também é pensar a urgência com que o Estado deve cumprir seu papel, sob pena de continuar falhando em sua missão.
CONCLUSÃO
Pensar o Estado a partir do conjunto de ações voltadas a processar demandas dos segmentos invisibilizados, marginalizados e historicamente superexplorados implica em desnaturalizar a ideia de que reforma do Estado, eficiência e administração pública são temas circunscritos a desburocratização, redução de gastos, privatização etc, enfim, à agenda neoliberal.
Devemos parar de antagonizar o Estado que aí está. Paremos de buscar explicações para a negatividade do Estado ou da Sociedade, e situemo-nos em meio a um processo histórico cujas narrativas estão em disputa. Se há uma entidade capaz de atenuar a exploração humana, de tirar recursos de onde tem e colocar onde não tem, de forçar uma redistribuição, de promover uma unidade social em torno de valores sociais e coletivos, de promover o desenvolvimento econômico e social e até de dizer o que vem a ser esse desenvolvimento, essa entidade é o Estado.
O Estado é o campo onde as mais diversas perspectivas particulares lutam para serem convertidas em universais através da palavra oficial. Onde as batalhas são pelo poder de falar em nome do interesse público, produzir sentidos, consagrar perspectivas de mundo e, assim, alterar ou perpetuar os padrões materiais e culturais, estabelecer a ordem que dita o acesso a todos os recursos escassos. Mas para democratizá-lo, tornando-o agente e instrumento de transformação social, e não de preservação de privilégios e ampliação de desigualdades, é preciso debatê-lo e disputá-lo em suas minúcias: palavras, prazos, lógicas de funcionamento, regras de comportamento, normas, padrões, hierarquias, força de trabalho, formas de construir problemas e soluções oficiais, a forma de se pautar e de pautar a sociedade, a forma de contratar etc.
Como ensinava o velho Marx, não basta interpretar o Estado de maneira diferente; temos que transformá-lo.